domingo, 11 de dezembro de 2011

"Multiplicidade de Corpos"

João W. Nery (Imagem: Google)

Ele nasceu Joana. Sempre se sentiu João. O escritor João Walter Nery tem dado várias entrevistas contando a sua história, sobretudo o sofrimento de nascer em um corpo que não lhe era próprio. Isso tudo pode  parecer bem clichê, mas é a vida real de João W. Nery que ele conta no livro "viagem solitária", à venda em livrarias do Brasil.
No país desde 2008 é possível fazer a cirurgia de redesignação sexual (ou processo transexualizador) pelo Sistema Único de Saúde, como consta na Portaria 457 de 19/08/2008. É um processo longo e progressivo. A cirurgia para mudar o aparelho genital é a última parte. Quando acontece. 
Para as trans homens, antes disso virão as injeções de testosterona que farão com que apareça a voz grossa e a barba. A menstruação cessa. A cirurgia de ablação das mamas é mais uma etapa a ser encarada. Há ainda uma outra cirurgia que também pode ser feita: a histerectomia, para retirada do útero, ovários e trompas.
As adequações anatômicas em pessoas que nascem mulheres e se sentem homens, como a construção do pênis, por exemplo, é algo ainda experimental e considerado uma raridade nos centros especializados em mudança de sexo. João Nery também tem falado sobre isso em suas entrevistas.

Algumas questões e polêmicas permeiam a liberação da cirurgia de redesignação sexual pelo SUS. Vejamos.
Para a Organização Mundial de Saúde, a transexualidade é um transtorno de identidade de gênero, portanto, um transtorno de personalidade. Uma patologia. E é com base nesse pressuposto que está garantida a gratuidade do procedimento. 
O SUS foi criado com a Constituição Federal de 1988 para que toda a população brasileira tivesse acesso ao atendimento público de saúde. É uma conquista muito importante, fruto da luta dos movimentos sociais, do movimento pela reforma sanitária. É uma vitória da democracia. 
Nesse sentido, é muito bom que o processo transexualizador possa ser feito pelo SUS. É um direito. No entanto, as intervenções cirúrgicas só são realizadas se atenderem a critérios estabelecidos por uma resolução do Conselho Federal de Medicina. Um laudo atestando a necessidade do procedimento deve ser feito por uma equipe composta por psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo (a) e assistente social. O laudo indica que o transexual tem um transtorno psicológico que o faz não se conformar com aquele corpo. Por isso, ativistas dos movimentos LGBT organizam debates, discussões e campanhas que questionam o transtorno mental imputado à transexualidade. 
Abaixo, imagem da campanha "Não é transtorno, É transcedência", de um grupo contra a homofobia, lesbofobia e transfobia.




Ao lado, a tela A Mulher Barbuda, de José de Ribera (1631). Magdalena Ventura de los Abruzos tinha bigode e intensa barba negra. Aparece na tela amamentando seu filho caçula com sua volumosa mama direita. Tem fisionomia masculina e, segundo o Portal Médico é um caso de androgenização registrado em obra de arte.


Voltando à transexualidade, segundo a Wikipédia, deixou de ser considerada um transtorno mental na França em 2010, primeiro país a tomar essa decisão, graças à luta e reivindicações dos movimentos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros.
Segundo o estudo "Transexualismo, psicanálise e gênero: do patológico ao singular", a vontade de ser do sexo oposto não implica necessariamente uma patologia ou uma disfunção da percepção da aparência, mas uma singularidade de algumas pessoas.
No site Círculo Psicológico, "o psicólogo Rafael Cossi, autor da pesquisa, trabalhou com várias noções da psicanálise lacaniana para tentar explicar por que algumas pessoas buscam viver suas vidas como se fossem do sexo oposto". 
Ainda no site:

Segundo Cosi, tratar o transexualismo como uma singularidade de cada pessoa é entender a personalidade de cada uma delas e fugir dos estereótipos.  “Transexual não é apenas a pessoa que solicita a cirurgia de mudança de sexo. Há homens que vivem como mulheres e mulheres que vivem como homens mesmo com o órgão sexual oposto. Eles lidam bem com isso e sentem que não precisam fazer a cirurgia. Para muitos deles, sua redesignação civil, a mudança de nome, já lhes é suficiente, assim como o reconhecimento e o respeito do outro.”
Não sou estudiosa do tema, apenas curiosa e interessada em teorias sobre gênero, sexualidade e orientação sexual. Não necessariamente nessa ordem. Tenho lido e feito algumas reflexões sobre a teoria queer que recusa a classificação dos indivíduos em categorias universais, como homossexual, heterossexual, homem, mulher.

O próprio João W. Nery fala em suas entrevistas sobre a teoria queer e questiona a rígida diferenciação entre o "feminino" e o "masculino". Veja o que ele diz na entrevista que deu à Marília Gabriela para o Programa De Frente com Gabi:
"O transexualismo, como os transgêneros e os travestis são tudo trans identidades e são hoje todas vistas dentro do enfoque da teoria queer (...). Queer é uma palavra inglesa que quer dizer estranho. E que as lésbicas, homossexuais de uma maneira geral, falavam para se autodefinir. São pessoas híbridas que saem desse esquema de heterocentrismo, ou seja, só há homem e mulher e heterossexual é que é o normal, o resto é doente (...). E é ótimo que existam transexuais e que exista a patologia, sabe  porque? porque aí o hetero diz: 'eu sou normal e você é doente. Eu só posso ser normal porque você é doente'. Então, é ótimo que hajam os trans, os travestis, ou seja, uma multiplicidade de corpos".
Na entrevista que João W. Nery deu a Antônio Abujamra no programa "Provocações" tem um trecho fantástico, quando ele responde à pergunta sobre "O que é ser um homem?". 
Veja o que ele diz:
"Eu acho que há uma questão cultural muito forte. Ser homem e ser mulher, claro, é uma diferença física que basicamente a mulher menstrua, engravida. E até que ponto isso realmente não é o que diferencia. E digo a você que ser homem não é ter um pênis". 
Assista a entrevista:          







                                                             Transamerica - Cartaz


Escrevendo sobre João W. Nery e lendo sobre transexuais, claro que eu lembrei do filme Transamérica (2005, EUA), direção de Duncan Tucker. O filme mostra a história de Bree Osbourne (Felicity Huffman) uma transexual que vive em Los Angeles e economiza seus recursos financeiros para fazer a última cirurgia que a transformará definitivamente em uma mulher. Durante esse processo ela recebe um telefonema de Toby (Kevin Zegers), um jovem preso em Nova York que está à procura do pai. Bree se dá conta de que ele deve ter sido fruto de um relacionamento seu quando ainda era homem. Ela vai, então, ao encontro do filho e o tira da prisão. O rapaz acredita que se trata de uma missionária cristã tentando convertê-lo. Bree não desfaz o mal-entendido, mas o convence a acompanhá-la de volta a Los Angeles. Durante a viagem muita coisa acontece. Inclusive a verdade. É um filme tocante, sensível e bem-humorado. Vale a pena assistir. 
Para encerrar o post de hoje, deixo o trailer legendado do filme Transamérica:













10 comentários:

  1. Parabéns SuelY. Matéria sensível e séria! Só pra complementar, só existem 5 SUS em todos os 27 estados brasileiros. Muito há que ser feito e não acho que o fato dos transexuais deixarem de serem vistos como "doentes mentais", vai fazer com que percam as benécias dos SUS.beijos João W Nery

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  2. Obrigada, João! Bom te saber por aqui. Beijos.

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  3. Ótimo texto Suely, senti falta da discussão com o feminismo. Mas acredito que isso seja para um próximo texto. Beijão!

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  4. Oi, Manu! Obrigada pela visita! Essa é a ideia do post. Puxar uma discussão com o feminismo. Na minha opinião, a transexualidade e o processo transexualizador deveria ser parte da discussão feminista e deveria interessar ao feminismo. Para as trans homens ou para as trans mulheres. Mas infelizmente essa discussão so vem sendo feita com os movimentos LGBT. É o primeiro post que escrevo sobre. É um tema que me interessa bastante. Beijos, flor. E mais uma vez, obrigada!

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  5. Muito legal, Suely! Curto muito ler e debater a temática de gênero. Li algumas coisas sobre a Teoria Queer e nela estou encontrando algumas respostas para inquietações antigas sobre essa tal "sexualidade humana", que apesar de complexa e múltipla, algumas pessoas teimam em tentar "emoldurar", como se fosse algo que pudesse ser pendurado e exposto numa parede, para ser observado por olhos curiosos e vigilantes. Acredito que você tenha assistido "xxy" - aquele filme fantástico sobre os Intersex - que traz reflexões muito pertinentes e próximas ao que a Teoria Queer defende...

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  6. Oi Su, seu texto está excelente! A transexualidade masculina é mais um dos obstáculos que o feminismo deve transpor, incorporar em sua pauta.
    Parabéns e obrigada por nos porporcionar dados, informações e a possibilidade de (re)pensar este assunto

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  7. Olá, Suely. Cheguei ao teu blog através do link que o João publicou no facebook. Parabéns pela matéria séria e muito informativa. Faço parte do grupo de onde você extraiu aquela imagem lindíssima contra despatologização. Obrigada pela contribuição!

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  8. Pois, é Wedja... essa discussão também me interessa e tenho aprendido muito. Bom te ver por aqui. Obrigada e um beijo.

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  9. Obrigada, Rita. Legal que o Cine Mulher está pautando esse debate. Tem bons filmes pra gente fazer a discussão. Um deles, comento no post. Beijos. Volte sempre que quiser!

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  10. Que bom, Jarid! É muito legal saber que a comunicação está acontecendo. Aquele post, inclusive, eu já tiha postado em minha página do facebook. Agora estou lendo a Viagem Solitária. Adorando. Depois vou comentar. Bom que você gostou. Tentei ser cuidadosa. Beijos. Obrigada!

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